terça-feira, novembro 17

Domingo.

Era domingo ou qualquer outro dia de sol. Fomos, eu e Cris, para a casinha do lado da loja. Fernanda tinha festa de família e não foi. Vieira não foi porque não tinha família e não gostava de festas. Erámos só eu e Cris e aquela casa antiga. Entramos como fazíamos há tantos anos atrás. Três voltas na chave, levanta a maçaneta, empurra para a esquerda e entra. Tudo no lugar. A ordem imperava numa calma que não era natural. Pensei em dizer alguma coisa, um daqueles bordões da infância. Cris deve ter pensando o mesmo e ficou no ar aquele silêncio travado, impedido.

Passou a tarde e à noite resolvemos sair. A rua era vazia sem as crianças que cruzavam de um lado para o outro com inocência. Nos nossos dias, se ouviria de longe as risadas. O tempo mudara e a chuva nos fez entrar no bar. O pequeno copo batendo com força no balcão, a cara um pouco retorcida e aqueles velhos pareciam fazer o sacríficio de beber não porque fosse bom mas porque era vital. Ninguém nos cumprimentou, sequer nos viram. Naquela cidade esquecida, nós eramos os fantasmas. Esvaziamos uns dois copos e a garganta ficou seca. Começava a chover dentro do bar e saímos. 

Seu Nhô, sentado na calçada, molhado e contando as gotas que caíam, sorriu para nós e disse: quarenta e sete mil, seiscentos e vinte e um. Devia ser isso mesmo. Assim como era certo que o trem cruzaria a rua Ametista às 21h47, mas não. Só havia na linha uns sacos de lixo e um cachorro. Às 21h48, o cão cruzou a rua Ametista e nós cruzamos a linha em direção à igreja.

A missa havia acabado há muito e Cris foi conferir se não haveria casais no canto que o poste não alcança. Nada de casais e o poste que anunciava o amor em três dias mais fazia sombra que luz. Sentamos na calçada e esperamos o sino bater a meia-noite. Olhei no relógio, já era quase uma e Cris cochilava. Levantamos e a chuva havia secado as ruas mas não as roupas. 

Na velha casa, Cris pediu que lhe fizesse um mingau que eu não lembrava como fazia. O caderno de receitas que ficava em cima do armário não estava mais lá e fiz um café forte. Fiquei de pé, ao lado da cama, vigiando seu sono até que amanheceu. Pegamos as malas que sequer desfizemos e partimos. Do retrovisor, a imagem daquela casa ia se apagando aos poucos e me lembrei que havia dado apenas uma volta na chave e a porta ficaria aberta.