sábado, dezembro 26

O cadarço.

Só eu sei dessas noites longas que passo, eu e meu cadarço, a desembaraçar os nossos próprios nós. E é assim: a gente calado, sentado, de pernas cruzadas, tentando compreender o porque de tantas voltas. Dou um passo, ele me prende. Eu o pego, ele se solta. De repente, percebemos que estamos combinados e que somos o pé do outro. No fim, levanto, refaço o laço e ele me aperta o caminhar. Sempre no mesmo passo.


.

segunda-feira, dezembro 21

Ponto.

Sou um escritor. Assim sendo, não há melhor meio para lidar com a vida do que usando as palavras. A meu modo, é claro. Escrever se tornou a minha única forma de contato efetivo com o mundo. Digo efetivo porque os outros meios comumente empregados, como falar e usar linguagem corporal, já me causaram uma série de infortúnios. Preferi, então, abdicar de toda forma de comunicação que não seja escrita. Ainda não posso afirmar com precisão quais são os possíveis danos que isso me trará, contudo estou convencido de que não poderia ter feito melhor opção. Aqui, escrevendo, posso me corrigir, me policiar, não recorrendo no erro de ser intempestivo. Foi isso que quase me levou à ruína, ou ao ostracismo, seja lá qual for o pior (creio que no meu caso, seja o ostracismo, porque se estivesse arruinado, mas ainda fosse lembrado, eu teria uma chance de me reerguer). Esta é minha primeira ação da minha nova vida. Ou melhor, é a primeira ação do meu novo modo de levar a vida, porque minha vida por si mesmo não creio que mudará tanto (Engraçado pensar que eu poderia ter apagado esse trecho, mas preferi usar “ou melhor”. Talvez tenha sido pela dramaticidade).
Meus amigos moram todos longe, de modo que o contato por cartas não abalará minhas relações. Quanto à vida amorosa, me considero um abstêmio, mais pelas circunstâncias que propriamente por resolução minha. Fora isso, meus demais contatos envolvem troca, como ir ao supermercado, e isso nunca me obrigou a dizer palavra alguma.
Na última carta que recebi de um amigo meu, ele dizia que eu era um despatriado voluntário, que resolvera se deportar para um mundo particular e que se via preso em sua redoma. Queria concordar com ele, porém me vejo de um modo completamente oposto. Se abdiquei do mundo externo, não foi por privação, e sim por saber que entre mim e mim mesmo a relação é a melhor possível, porque ao mesmo tempo em que falo me entendo perfeitamente. Com qualquer outra pessoa isso não se dá. A melhor forma para resolver essa questão é trabalhar ao máximo a palavra, ser um ouvires, como dizia Bilac. Não corro o risco de ser mal interpretado no que escrevo e isso me alivia.
Agora penso que escrevi isso tudo em um só fôlego. Creio que era o ritual. Agora estou pronto.




.

Sem trinco.

E agora eu sou porta.
Tudo passa por mim, a vida que adentra casa afora para alegrar a cozinha
O tumulto que da rua alarda as crianças
O som de som que envolve o ar

Passa o homem de pé atrasado que me bate e eu não me importo
Desde que saia
O menino que volta e se esconde
E eu abro e fecho até ele aparecer

O vento que brinca cocégas
Eu finjo que deixo entrar mas não
E ele suspira do lado

Ruim é sair todos
E eu esperar abrir e receber
Que receber é melhor que ver partir

Sempre voltam
É em mim que chegam
Eu abro o caminho e o abraço
E escuto, sempre escuto

Agora sou porta e o mundo passa por mim.


.

Passarinho

E se eu te passarinho

Você de ninho

Eu carinho



No caminho

Desse vôo ninho

Eu te passarinho



Eu tão leve

Você na minha

Passarinho.


.

terça-feira, novembro 17

Domingo.

Era domingo ou qualquer outro dia de sol. Fomos, eu e Cris, para a casinha do lado da loja. Fernanda tinha festa de família e não foi. Vieira não foi porque não tinha família e não gostava de festas. Erámos só eu e Cris e aquela casa antiga. Entramos como fazíamos há tantos anos atrás. Três voltas na chave, levanta a maçaneta, empurra para a esquerda e entra. Tudo no lugar. A ordem imperava numa calma que não era natural. Pensei em dizer alguma coisa, um daqueles bordões da infância. Cris deve ter pensando o mesmo e ficou no ar aquele silêncio travado, impedido.

Passou a tarde e à noite resolvemos sair. A rua era vazia sem as crianças que cruzavam de um lado para o outro com inocência. Nos nossos dias, se ouviria de longe as risadas. O tempo mudara e a chuva nos fez entrar no bar. O pequeno copo batendo com força no balcão, a cara um pouco retorcida e aqueles velhos pareciam fazer o sacríficio de beber não porque fosse bom mas porque era vital. Ninguém nos cumprimentou, sequer nos viram. Naquela cidade esquecida, nós eramos os fantasmas. Esvaziamos uns dois copos e a garganta ficou seca. Começava a chover dentro do bar e saímos. 

Seu Nhô, sentado na calçada, molhado e contando as gotas que caíam, sorriu para nós e disse: quarenta e sete mil, seiscentos e vinte e um. Devia ser isso mesmo. Assim como era certo que o trem cruzaria a rua Ametista às 21h47, mas não. Só havia na linha uns sacos de lixo e um cachorro. Às 21h48, o cão cruzou a rua Ametista e nós cruzamos a linha em direção à igreja.

A missa havia acabado há muito e Cris foi conferir se não haveria casais no canto que o poste não alcança. Nada de casais e o poste que anunciava o amor em três dias mais fazia sombra que luz. Sentamos na calçada e esperamos o sino bater a meia-noite. Olhei no relógio, já era quase uma e Cris cochilava. Levantamos e a chuva havia secado as ruas mas não as roupas. 

Na velha casa, Cris pediu que lhe fizesse um mingau que eu não lembrava como fazia. O caderno de receitas que ficava em cima do armário não estava mais lá e fiz um café forte. Fiquei de pé, ao lado da cama, vigiando seu sono até que amanheceu. Pegamos as malas que sequer desfizemos e partimos. Do retrovisor, a imagem daquela casa ia se apagando aos poucos e me lembrei que havia dado apenas uma volta na chave e a porta ficaria aberta.