domingo, outubro 30

A invenção da mentira


Não são só os velhos que envelhecem. Marina escreveu.
Ela colocava as mãos sob o papel antes de escrever. Com o lápis, seguia o contorno do que havia dito à folha. Escrevia sussurrando. Eu ouvia o leve atrito entre o grafite e a fibra e era mais como um contrato, como se um permitisse ao outro se eternizar enquanto morria. Marina escrevia mentiras. Criava casos. Inventava histórias. Matava lápis.
Deixei de ser menino em uma aula de redação, em 1995. O papel estava em branco e eu olhei ao redor pela primeira vez. Eu vi o absurdo de estar em uma aula de redação. Senti a gravidade de ter de estar ali. Eu me deixei estar, mais sério, grave e controlado.
Não foram meus tantos anos ou a voz grave que me tornaram homem. Nem as trinta e duas noites que havia passado fora de casa. De repente, eu não me perguntava o que eu seria e me tornei o que era. Foi depois de apontar o lápis. Depois de saber que o tema da redação não tinha a menor importância. Pouco antes de olhar a folha branca.
Eu coloquei as minhas mãos sobre o papel e ele me disse.

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sábado, outubro 22

O menino


Era o menino. Era o pai. Era um ônibus e eu julgava que uma mãe indulgente havia deixado ali a criança, sentada, ao lado do motorista, sobre o motor do ônibus olhando fixamente para a frente. Reclamava internamente o absurdo quando vi a pequena mão sobre o câmbio. Outra, maior, lhe vinha por cima, encaixava naturalmente e ambas moviam a alavanca, pai e filho nos guiando pela cidade. Não poderia haver maior seriedade que a daquele garoto, que não era nem motorista nem ajudante, fundia-se no pai e cumpriam os dois uma missão da mais absoluta importância.
Quando puxei a corda e desci, nem pai nem filho me olharam. Sabiam o ponto de cor, sabiam que deveria virar à esquerda, depois mais dois quarteirões e chegariam à estação. O menino deixaria a seriedade de um condutor pra ser a criança que o tempo lhe deixava ser. Ele sabia ser sério sem deixar de ser leve. Eu não sabia mais ser leve e não me levava a sério.
Caminhei alguns metros até parar em frente ao meu apartamento. Coloquei a mão sobre a fechadura e, antes de girar, lembrei que não havia nenhuma mão sobre a minha. Nenhuma mão sob a minha. E nunca mais fui menino.

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quinta-feira, outubro 6

Rebento

Você queria só viver e foi viver só. Ah, criança, vai aprender que é na casa vazia que a mente fica cheia.
O seu quarto tá qual tal, a bagunça em seu lugar. A cozinha tá sem cheiro esperando você chegar. A sala cansou de estar e se tornou uma varanda aberta para quando você chegar.
Você vai sentir, criança, quando a conta vier, a saudade bater, o gás acabar, a vontade vencer, que você nunca quis sair, se ir, bater a porta.
A sua casa eu nunca vi. Não liguei nem telegrafei, que é pra você ver o mundo sem eu. Não rogo praga, só oro, pra um dia minha criança voltar para o café quentinho, o bolo assando já fica pronto e o dia caindo mansinho.
Eu queria só que você voltasse e a gente não fosse nunca só.

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