segunda-feira, novembro 29

A volta

Na mala, guardei apenas uma muda de roupa. O resto era saudade. Tão grande que sentia saudade da saudade que sentia. Não tinha certeza se daria certo, se voltar era o correto, se ela acreditaria nas desculpas que inventei. O resto era verdade.
Partir dói mais para quem fica. Nos dividi sem lágrimas, não mandei notícias e procurei não saber. Foi assim que achei. E bastou saber que ela continuava lá, que – ao contrário da memória que a gente controla – não havia se desfeito no ar, para que não houvesse mais nada à frente. O impulso era voltar.
Ela não abriu a porta e da janela me viu esperar todo o dia, a noite passando, nova manhã, recebi o leite, e ela não abriu a porta. A mala virou travesseiro, as duas roupas se revezavam na árdua tarefa de ser casa na chuva e vergonha no sol, o dinheiro acabou, a fome chegou e ela ainda não me quis.
O tempo se faz amigo de quem não tem pressa e um dia ela cedeu. Vi sua fortaleza abrir a porta para mim. A cara lavada, a alma fresca e de tão renovada não era a mesma que precisava de mim. Perdi o motivo de ter chegado. Um caminho tão longo, uma jornada tão dura e já não queria entrar. Ainda assim disse tudo o que ensaiei sentir. Havia pouco de verdade. O resto era saudade.

.

sexta-feira, setembro 24

A música que um dia te falei


Demorei para lembrar se seu aniversário era dia 20 ou 21. Demorei até demais. Quando lhe vi no café, já era quarta-feira, dia 22, e você me olhou com toda a decepção do mundo. Eu bem queria ter feito diferente, nascido diferente, quem sabe? Você não sabe. Nem suspeita que guardo e conheço os detalhes de todos os seus detalhes.

O que eu sei de datas? São números e só. Toda semana, bloqueio minha senha e passo os dias sem dinheiro. Em janeiro, ou outubro, não lembro,  você me deu seu telefone. Só liguei depois de uma semana, não porque eu não importasse, é que tive que tentar muitas combinações diferentes já que me confundia entre o 3 e o 6. Quando você atendeu pensando ser seu irmão e disse Oi, carinho, eu fiquei mudo.

A sua terceira pinta no ombro não é pinta, é de quando você se machucou na casa da sua tia. Sua boca treme um pouquinho quando você fala do seu pai. Não teve palhaço na sua festa de 7 anos. Xampu no olho é seu terceiro maior medo, depois de baratas voadoras e de filmes com zumbis. Você gosta que mexam no lado esquerdo do seu cabelo e odeia conversas sobre animais.

Naquela caixa que eu segurava quando lhe encontrei um ou dois dias depois do seu aniversário, trazia um pequeno presente para cada um dos seus 21 anos: para se lembrar do seu pai, um regador de plantas verde; para o nascimento prematuro, um despertador sem ponteiros; para a mania de rodar os anéis nos dedos, mais anéis; e assim ia.

Antes que eu pudesse dizer qualquer palavra qualquer, você apenas disse que já não valia a pena se o que era importante para você, eu ignorava. E enquanto você caminhava na outra direção, a nossa música tocou.

 .

segunda-feira, agosto 30

Tanto

De tanto querer que no futuro eu fosse presente, ela me prende com umas garras de mulher mais forte que bicho e eu já não posso passar sem pensar que era passado o tempo que eu e vinha pra onde Deus quiser. Esse Deus que é dono de tudo me deixou ter dona que queria era o mundo inteiro e o mundo inteiro dela sou eu.

De tanto fugir sem volta que não saio do lugar de orbitar em volta dela, cansei de toda força e fui me deixando cada vez mais devagar como se para me alcançar não bastassem dois passos dela. É que o adeus, essa palavra danada que já distribuí tanto por ai, me falta à boca e não posso nem dizer até logo sem pensar que não adianta de nada se tudo que faço me faz voltar pra ela.

De tanto odiar essa mulher, invento que amo e a mentira faz acreditar. É que, meu Deus, sem ela o mundo não tem volta, não tem cor nem pensamento. Sem futuro e passado, não posso passar sem pensar que ela é o presente e o ponto final.

.

quinta-feira, agosto 26

Não colecione


Foi com uma simples plaquinha de Não Pise na Grama que Tavares começou sua coleção de nãos. Havia não de todas as formas e tamanhos. Não fume, não entre, não urine na parede e o que mais se puder esperar de um aviso. Dos amigos e de suas poucas viagens, tinha negações de todo o mundo. Aos nãos, se uniram no, don’t, nicht, inte, ne, ikke e até um hij, que até hoje não se sabe se é um não ou não.

A compulsão era tanta que as visitas hesitavam na hora de entrar na casa do Tavares. Começando pela porta, indo sala afora e avançando pelo corredor, havia centenas de palavras imperativas que assustariam a mais destemida das crianças. Quando lhe perguntavam se ele também era assim, tão negativo, Tavares sorria e dizia que não, era um otimista, um dos últimos. Por que da coleção, então? Por que não?! ele respondia.

Os amigos mais próximos tinham uma teoria. Tudo havia começado há uns 2 anos, quando Tavares namorava Marcinha. Apaixonado que só, fazia juras e juras e a menina se fazia de carinhosa enquanto colocava em sua cabeça mais chifres que placas na sala. Mesmo ouvindo o pior dos amigos, Tavares resolveu que era hora. Convidou Marcinha pro restaurante mais caro da cidade e perguntou: “Quer se casar comigo?”. Não demorou 2 segundos pra ela dizer secamente. Não.

A vida seguia sua ordem até o dia em que, saindo de um show, Tavares viu colada uma folha simples de papel: Saída sem retorno. Recolheu o aviso sem que ninguém o visse e foi-se, dizendo ir para casa. Mas nunca mais voltou.

.

terça-feira, julho 27

Imaginário de Lygia Fagundes Telles

Coelha, queria te falar isso de amor que gente fala quando ama. Você sabe. Essas palavrinhas que você diz de manhã e eu acordo acreditando no mundo. É encantamento, Coelha? Me diz se você é uma bruxinha, uma dessas feiticeiras com caldeirão no porão. Se for, faz uma sopa de cenoura pra mim, faz. Com cebolinha. Ah, você já sabe que eu gosto de cebolinha. Já até sinto o cheiro. Sente também? Respira. Respira grande. Bom, não é? Sabe que gosto mais? Banho. Você enrolada na toalha te abraçando, andando de um lado pro outro, flutuando atrás daquela sua blusa e o quarto inteiro vira perfume. Você faz poção e perfume, Coelha?


.

segunda-feira, julho 5

A tela

Meu notebook pediu uma nova cara. 
Juntei meu texto às imagens da memória e:

Foto de algum link antigo do FFFFound

segunda-feira, maio 31

Catorze


Tem 14 anos que eu e Junia somos juntos e ainda não aprendi os detalhes de ela ser. Vez alegre, outra triste. Acordou animada e logo não vê motivo para sair. Me ama e desama como ama e desama o mundo todo. Tem 14 anos que a Junia eu não entendo e todo dia eu quero o dia seguinte.

Cansei de ela ser umas três vezes, duas em agosto e uma na escola. Era pequeno ainda quando Junia e eu brincava que era advogado e ela me pedia divórcio. Pedia tanto que dei, aceitei, consenti, resignei e cansei até saber que cada pai tinha ido para um lado com ela no meio e nem estive perto. Descansei ela fugindo das aulas de matemática e ensinando a subir na árvore que era onde ela se escondia do que a separava.

Agosto cansava do aniversário e de tristeza ela invadia a vida afora. Não me deixava nem no trabalho ligando hora sim hora também pra ficar calada. Soube que tinha medo e descansei ela na adega do restaurante que é onde o tempo parado melhora o sabor.

Teve vez outra que dia dos pais ela quis fazer o filho. Sabia que o menino era o homem que havia partido e brinquei ser forte fazendo dela mulher. Se fez de fácil, de santa e amor já era quando descansei ela no peito nu.

Ela queria casar e eu viver. Dividimos a casa e já era lar quando ela disse que vinha uma criança. Não veio. Parou no caminho e nós ficamos assim perdidos. Veio o segundo e ela renasceu na primavera. Aparecia assim em flor perfumando a casa e não tinha raiz flutuando leve pelos cômodos. Logo murchou e mal me quer caiu pelo chão escorrendo o nosso futuro em vermelho. Me pediu vai vem abraça solta mata socorre e levei nos ombros o peso de nós dois e os outros tantos que não sairiam dela.

Bateram dez anos e ela quis Paris. Ofereci vinho e ela disse que partia. Havia um mundo grande ela tão grande e eu não. Correu meio corpo pela metade quando bateu à porta tarde já. Pelos fundos expulsei outra e abri a casa coração colchão e ficaria semana só, mês talvez e mais quatro anos.

De Paris fez Londres para Nova York e mundo afora se foi perdendo. Eu meio bêbado a vi entrar pela porta dançando sem malas e pintando as paredes, mudando mobília, levantando paredes e gritando sem medo amor o mundo é isso.

Dia cheguei em casa e tão vazio me assustei. Da sala, cozinha, banheiro em nada ela estava. Chorava como menino e ela entrou. Nova. Toda vigor e grávida me deitou em sua barriga. Meu mundo orbitando aquela barriga que me orbitava e ela era meu mundo. Ela meu mundo inteiro a desvendar e descansar.


.

domingo, maio 23

.

Dia a dia não tem mais hífen e nem por isso a vida tem mais pausas.


.

quinta-feira, maio 6

Volta


Ela é todo laço.
Toda volta.
Me revolta tanto embaraço.
Me contorna, me prende.
Repreende quando me solto.
E sempre volto.
Então em enlaça e, entrevoltas, desembaraça os fios soltos.
Desata os nós e, entre nós, me deixa livre, como se solto não estivesse já preso entre seus laços.


.

quarta-feira, março 24

Fragmento

Eu queria mesmo era uma ponte
Pra atravessar todo desvio
Pra pular de montanha em montanha
E rir do rio que passa lá embaixo


.

domingo, março 21

Por ela


Hoje começou o outono e sinto a falta irremediável de minha mãe. Faz mais de um ano que ela foi sem se despedir e de certa forma continuo negando sua partida. Sempre houve tanto a dizer que nunca acreditei poder escrever uma homenagem que lhe valesse. Mas se é isso que faço, escrever,é por essas linhas que tenho de lhe valer tanto amor. Ela não me viu formar e não viu eu me tornar o homem que sempre quis ser. 

Tenho vivido, e toda a paixão que sinto se deve completamente a ela. Minha mãe não foi plena, não se realizou em si, porem semeou em mim essa necessidade extrema de acordar, de levantar, de viver todos os dias. Amo a vida por causa dela, e como queria poder lhe devolver a vida, ou ao menos ter a certeza de que ela partiu satisfeita com a vida teve. Me dói o tanto que se renegou para que eu conquistasse o que tenho.  Ela se sacrificava dia após dia para que eu tivesse vida, e a tenho, mais do que nunca, ainda que falte o meu melhor pedaço.

Ela se orgulhava de mim por meus menores gestos e até dizia que eu parecia meu pai mais por uma necessidade de validar o amor que sentia por ele que realmente pelo fato de ele ser alguém irrepreensível. Tenho construído minha vida por ela, por sua honra e para valer tudo que me foi dado de graça, pelo maior amor que eu poderia conceber. Todos os dias, busco me fazer digno de tudo que ganhei. Quando recebi meu diploma, me tornando o primeiro da família a ter um curso superior, apontei o canudo em direção a minha família que vibrava na platéia, como se dissesse: é por vocês. E não era. Não poderia apontar para outro lugar porque minha mãe não estava acima nem ao lado; ocupa simplesmente todos os lugares, não me deixando nunca sozinho. É como se eu pudesse sentir o tempo todo seu olhar de aprovação e apoio.

Poucos dias depois do fatídico domingo, sonhei com ela. Ela apenas surgiu para dizer tchau. Era o que eu precisava para suportar aquele momento. Ela havia partido sem me dar tempo de dizer o que eu nunca conseguiria dizer. Hoje sei que não havia mais nada a ser dito. Ela sabia, ela sempre soube.

Se vejo crianças com mães no ônibus, na rua, onde quer que seja, sinto o coração preenchido. Sinto o quanto fui amado, o que ela viveu em mim, por mim e comigo.

Ela não sentia a menor diferença entre as estações. Ainda assim brilhava como o sol no verão, era inspiradora como o outono, aconchegante como o inverno e faz da minha vida a primavera de nossas duas vidas. É por você, Cidoca, sempre foi.

.

sexta-feira, março 12

Breve adeus

Este é um breve adeus.

          Mas não há como.

Como não?

          Adeus nunca é breve. É partida, mudança, morte, quem sabe.

Sim.

          E como você pode dizer que é breve?

Breve que dura só esta vida.




.

quinta-feira, fevereiro 25

O castelo

Havia 23 livros de poesia na estante. Vinte e três livros de poesia e uma biografia de Carlos Magno, vinda do amigo oculto de não se sabe qual ano. A estante guardava as recordações que conseguiu carregar do espólio da família, incluindo a medalha que o tataravô havia ganhado em alguma guerra antiga. Os objetos dispostos aleatoriamente permaneciam intactos por anos. Contudo, religiosamente retirava da estante um livro por dia, sentava na poltrona da sala, com vista para a avenida lá embaixo, e relia um poema qualquer. Em todos esses anos, não havia decorado um verso e se sobressaltava com finais inesperados. Lia baixo, como se recitasse pra si mesmo em segredo, num sarau particular do qual se envergonharia se alguém o visse.

Lia uma sucessão de rimas que não teriam fim não fosse a campainha ter tocado em um sábado imprevisto. Pela porta, o irmão entrou, fez do sofá um forte de onde não saiu pelos três dias posteriores. Entre ambos, reinava um silêncio impositivo, mais fruto da inabilidade do diálogo que propriamente dos anos de separação. Almoçavam sem trocar uma palavra e, por um pacto um tanto difuso e impalpável, entendiam-se quanto a esses assuntos domésticos que seriam comuns de discutir nos quatro meses que já dividiam o pequeno apartamento.

O desconforto seria evidente se trocassem olhares ao menos pela manhã, tomando o café dia feito por um, dia por outro. Por pouca conveniência e nenhuma prática, havia se habituado à presença do irmão, interrompendo-lhe a leitura tornada muda toda vez que bocejava ou se revirava no sofá, a essa altura sua única propriedade. Dormia ao lado da estante e nem por isso havia se atrevido a lhe lançar o menor sinal de interesse. Por seu lado, do quarto ele vigiava a noite, apurava o ouvido ao menor ruído e se pacificava ao ouvir o ronronar tardiamente distante. À noite sucedia o dia e a rotina com a qual não se acostumava durava mais de um ano.

Surpreendeu-se quando chegou e, da sua poltrona, o irmão lia as páginas intocadas de Carlos Magno. Levantou o olho apenas para cumprimentar e logo voltou a sua outra existência. Em um simples movimento, havia conquistado o reino de um homem.



.

terça-feira, janeiro 19

21 dias

Comecei a acreditar em uma segunda. Ela não havia ligado e eu sabia que em algum lugar, de alguma forma, havia uma certeza que me pertencia e dizia que as linhas que eram escritas sobre mim acabavam de tomar um rumo avesso. Não fiz nada além de ficar em casa, dormir e esperar nascer de novo, eu e o sol. Fato. Era terça e já acreditava piamente. Não foi preciso fazer nada, mudar nada, sequer esperar quitar todas as dívidas. Lá estava eu, tão novo e púbere quanto nos meus primeiros dias de vida, tardios. Eu me embolava, complicava, dizia muito para me surpreender da forma mais simples possível: eu estava apaixonado.
 

Nada me doía. As costas inesperadamente descobriram o melhor lugar da cama e despertaram dispostas a andar tudo o que andamos aquele dia procurando uma galeria que ela dizia ser na próxima, na outra, aqui, nessa esquina. Nada de galeria e ficamos parados enquanto a chuva não aliviava e me olhava e eu sabia, misteriosamente, assustadoramente, eu sabia.
 

Comecei a desistir numa sexta. Noite. Plano médio de eu ao lado do telefone. Penumbra. Trilha: Alanis Morissete, ainda não era tanto pra Adriana Calcanhoto. Era manhã de sábado quando me senti o mais estúpido por ter duvidado. Fomos à praça, ao parque, ao céu, ao inferno, ao cinema e ao deus-dará.
 

Fazia frio quando ela disse não ter aonde ir. Aprumei o travesseiro e tirei a outra toalha da gaveta. Ela fazia mais fumaça que eu, acordava depois, sabia antes e nunca me dava tempo para preparar os argumentos com que havia vencido as batalhas dos anos passados. Eu me deixava no sofá a vendo borboletear pela sala com a garrafa na mão, me oferecendo ela, que eu absorvia com goles cada vez maiores.
 

Quando era domingo, ela foi embora. Primeiros as malas, depois as roupas reservas, por fim eu fui. Fiz vigília em frente à casa, ao trabalho, o novo namorado, o antigo, o meu passado e o futuro dava medo. Dizia que a preferia a viver em paz. Que ela era tão Paris. Que era só o resultado do contrário e nada fazia sentido.
 

Passei as roupas velhas, comprei novas, aprendi italiano e a língua da outra. Era segunda e pela primeira vez me dei conta que a velha história se desenhava em novos contornos. Eu voltava a começar a acreditar que em algum lugar, de alguma forma, não importava mais. Eu estava apaixonado.




.