sábado, agosto 25

Balanço, balança


O corpo chegou à velhice antes de mim. Eu era ainda o mesmo garoto quando os ossos começaram o sussurro, fazendo das juntas a voz: daqui para frente, só restam despedidas. Os cabelos foram os primeiros a partir, flutuando no espaço até o azulejo frio do banheiro, um longo caminho entre a imaginação e os pés no chão. Com eles, me despedi do que me enchia a cabeça. Não me dava mais conta da luz que vencia e perdia os compromissos, os que interessavam e os que não.
Passavam os dias e o passado se afundava no fundo da cabeça, na curva em que a nuca dói, e por lá sumia, entre aniversários e onde deixei as chaves. Esquecia também o vizinho, o café no fogo, a chama. Não sei se truque ou travessura, voltava o que havia perdido há tanto que não lembrava. Eu revivia as brincadeiras do colégio e ao redor o mundo perdia matéria.
As forças foram embora antes que eu as pudesse agarrar, colocar embaixo do colchão e guardar segredo, sabendo que só eu sabia que elas valiam fortunas. A saúde não me poupava e rendia noites insones e dias sonolentos.
Quando não podia mais ficar de pé, sentei. Meu canto era a sala de estar, a janela aberta e a vista cansada preferia não usar óculos. A paisagem ficava turva e mais turva e eu não me importava, com as pálpebras fechadas e os olhos virados para dentro. A cadeira me ninava e eu era ainda o mesmo garoto, adormecendo sem despedida.

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sexta-feira, junho 1

Objeto indireto


A folha de rosto tinha a assinatura dela. Um certificado de posse de um romance que outro contava, mas que agora, pelo acaso de ter topado com a capa numa livraria e apreciado o título, era a história dela. O livro descansava na estante da sala, na mais alta prateleira, quase inatingível para os poucos um e sessenta dela. Quando ele lhe disse tem algo pra eu ler, ela sabia. Amanhã lhe trago. Trouxe. Ele apreciou o título, passou os olhos pela capa e sorriu para ela. Esperou chegar em casa e, já na cama, preparou apenas um pouco de luz para iluminar a cabeceira e se entregou à leitura.
Passava as mãos pelas curvas do livro. Ia se entranhando vagarosamente dentro da trama. A história o tomava e passou a noite inteira com ela. Quando o dia amanhecia, ele chegou ao clímax. Não queria que acabasse. Diminuiu o ritmo nas últimas páginas, como que para imortalizá-las. Quando fechou a capa que foi o início de tudo, ela abriu os olhos. Em outra cama. Na mesma história.
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quarta-feira, março 28

Quando menos se espera, vem a vida e pá. Falta saber pra quê o pá vem. Se é pra ser bom. Se é pra dizer vá.
Pode ser que seja um talvez dessa eterna mania de não fazer afirmações. Duvidar, duvidar e dar conta que o pá passou e nada mudou.
Se é pra ser ou pensar, melhor ser de uma vez.
A vida veio e pá. Eu não deixei passar.

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terça-feira, janeiro 10

No mais tardar

Quarta-feira seria um bom dia, mas eu tenho ioga, krav magá, massagem, paisagem, almoço, jantar.
Quinta é tarde. Sexta é depois. Hoje, talvez. Eu te pego depois do almoço. Eu te pego no trabalho, na escola, atrás da árvore, enquanto seu irmão não vê, de jeito. 
Isso, não espere. Eu vou chegar. É o que faço de melhor: chego. Mas sou péssimo em partir. Eu fico grudado em tudo o que deixo. 
Uma hora de hoje em que você estiver pensando no micro-ondas ou em roupa ou em azul, eu vou aparecer. Não pense em quando. Nem porque. Só onde. Do lado. 
Estamos combinados.

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domingo, janeiro 8

O homem sem gravidade

Ele parecia estar discutindo com o caixa quando me aproximei. Na verdade, não era nada. Ficamos amigos aos poucos e nunca fomos próximos. Não que ele se esforçasse por repelir as pessoas. Era só que ele andava melhor só. Passamos momentos comuns. Discutimos uma vez. Ele não levantou a voz sequer abaixo a cabeça. Não lembro o motivo, não importa. Anos depois, fui seu padrinho de casamento mesmo sem entender como ele conseguiu. Eu nunca havia visto uma mulher atraída por ele. Fato é que ele viveu. Um tanto sem rumo.

No final, ele tirou os pés do chão e flutuou.


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