segunda-feira, dezembro 12

Às mulheres que me amaram


Uma me deu o céu e isso me bastou por trinta minutos. Outra durou trinta minutos e foi um inferno. A do céu era feita de azul como a música e como melodia foi diminuindo até a próxima estação. Era tocar no rádio a lembrança e eu voltava para ela, repetindo, repetindo, repetindo.
A outra não me pediu nada. E partiu.
Havia a terceira e havia também os janeiros. Eu me despedia do ano e ela me fechava a porta. Passava o carnaval e eu trazia o chocolate recheado de desculpas e razões vazias que ela fingia acreditar.
A quarta era o melhor dia para beber. No mesmo bar, duas me comeram com os olhos e eu olhava o copo esvaziando, esvaziando, enchendo no outro dia de água e ela ao lado. A pus de lado enquanto a outra pensava em mim num outro quarto.
Quando chegaram as dez, já era tarde. Ainda assim, havia tempo para ouvir o que eu não contava. Foi a desconhecida que me fez ver que, de todas elas, eu não escolhi.
Elas me olharam e sabiam que seria eu.
Eu fui.
Agradecido, eu fui.

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sábado, dezembro 3

Fernando


Eu queria agora um livro do Pessoa. Porque é preciso. Porque ele atinge cirurgicamente a dor. E não cura. Ainda assim, faz doer por alguma razão que agora parece conhecida e isso é remédio. Não posso reescrever o presente e já não basta acreditar que o que não tem remédio remediado está. Não preciso de alguém. Me basta Pessoa.
Controverso que seja, coloque essas páginas a minha frente que eu me encontro. Sem marca páginas que quero mesmo é que essas linhas se percam em mim e façam o contorno de um ser que sou sem nunca querer ter sido. A vida é vírgula, esperando o ponto final de um parágrafo distante a cada novo aposto.
Você não vai entender e nem mesmo espero. Recolha a crítica. Não vou ler os jornais anunciando nenhuma grande descoberta antes de descobrir o que se passa no meu mundo. Chamem Pessoa para cobrir a matéria.


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domingo, outubro 30

A invenção da mentira


Não são só os velhos que envelhecem. Marina escreveu.
Ela colocava as mãos sob o papel antes de escrever. Com o lápis, seguia o contorno do que havia dito à folha. Escrevia sussurrando. Eu ouvia o leve atrito entre o grafite e a fibra e era mais como um contrato, como se um permitisse ao outro se eternizar enquanto morria. Marina escrevia mentiras. Criava casos. Inventava histórias. Matava lápis.
Deixei de ser menino em uma aula de redação, em 1995. O papel estava em branco e eu olhei ao redor pela primeira vez. Eu vi o absurdo de estar em uma aula de redação. Senti a gravidade de ter de estar ali. Eu me deixei estar, mais sério, grave e controlado.
Não foram meus tantos anos ou a voz grave que me tornaram homem. Nem as trinta e duas noites que havia passado fora de casa. De repente, eu não me perguntava o que eu seria e me tornei o que era. Foi depois de apontar o lápis. Depois de saber que o tema da redação não tinha a menor importância. Pouco antes de olhar a folha branca.
Eu coloquei as minhas mãos sobre o papel e ele me disse.

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sábado, outubro 22

O menino


Era o menino. Era o pai. Era um ônibus e eu julgava que uma mãe indulgente havia deixado ali a criança, sentada, ao lado do motorista, sobre o motor do ônibus olhando fixamente para a frente. Reclamava internamente o absurdo quando vi a pequena mão sobre o câmbio. Outra, maior, lhe vinha por cima, encaixava naturalmente e ambas moviam a alavanca, pai e filho nos guiando pela cidade. Não poderia haver maior seriedade que a daquele garoto, que não era nem motorista nem ajudante, fundia-se no pai e cumpriam os dois uma missão da mais absoluta importância.
Quando puxei a corda e desci, nem pai nem filho me olharam. Sabiam o ponto de cor, sabiam que deveria virar à esquerda, depois mais dois quarteirões e chegariam à estação. O menino deixaria a seriedade de um condutor pra ser a criança que o tempo lhe deixava ser. Ele sabia ser sério sem deixar de ser leve. Eu não sabia mais ser leve e não me levava a sério.
Caminhei alguns metros até parar em frente ao meu apartamento. Coloquei a mão sobre a fechadura e, antes de girar, lembrei que não havia nenhuma mão sobre a minha. Nenhuma mão sob a minha. E nunca mais fui menino.

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quinta-feira, outubro 6

Rebento

Você queria só viver e foi viver só. Ah, criança, vai aprender que é na casa vazia que a mente fica cheia.
O seu quarto tá qual tal, a bagunça em seu lugar. A cozinha tá sem cheiro esperando você chegar. A sala cansou de estar e se tornou uma varanda aberta para quando você chegar.
Você vai sentir, criança, quando a conta vier, a saudade bater, o gás acabar, a vontade vencer, que você nunca quis sair, se ir, bater a porta.
A sua casa eu nunca vi. Não liguei nem telegrafei, que é pra você ver o mundo sem eu. Não rogo praga, só oro, pra um dia minha criança voltar para o café quentinho, o bolo assando já fica pronto e o dia caindo mansinho.
Eu queria só que você voltasse e a gente não fosse nunca só.

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terça-feira, setembro 20

Lente

Eu vou tirar um foto sua. Vou clicar devagarzinho. Vai ver você sai com os olhos meio fechados como se acordasse. Como se fosse eu que acordasse você com minha máquina mágica. Vou capturar a sua alma. Devagarzinho.

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domingo, setembro 18

Parei. 18:15. Corri os andares do prédio em frente. Faltavam poucos minutos. No topo, lá estava: o céu alaranjado, ardendo o sol que se ia. Fotografei.

O fogo.

A viagem estava marcada há meses e, ainda assim, ela me agarrava todos os dias que saia para o trabalho como que para deixar sua pele grudada na minha. No trabalho, me perguntavam como seria. No supermercado, me perguntavam. Só ela não perguntava e era a única para quem eu não tinha uma resposta.

Era o último dia na cidade e ela me pediu para não fazer nada a não ser estar com ela. Subimos a serra. Passamos a tarde sendo um ao outro antes que fosse tarde. O sol se pôs longe e ela disse: estou eternizando esse momento.

Parti.

O avião aterrissou antes da noite. Ainda na pista, apontei a câmera e eternizei o sol que se punha. Passei três meses entre tons de laranja, vermelho e amarelo. Fui a parques, torres, mirantes, árvores e aonde mais pudesse me despedir do dia.  Em cada clique, sentia que o sol levava para o outro lado do mundo o meu calor.

18:16 e voei para o aeroporto. Voltei. Corri a casa dela, bati, apertei a campainha, chamei, encostei a cabeça e ouvi os passos que vinham longe. A porta se abriu. Ela atrás.

Entrei.

Mostrei os tantos momentos que eu eternizei. Ela mostrou a parede azul que havia pintado. Eu falei de como o clima esteve perfeito por lá. Ela falou de que como havia chovido por aqui. Eu trouxe o fogo. Ela apagou.

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sábado, setembro 17

Le Coin Perdu

Você ensaiou o que esperava ouvir de mim. E eu vim, com o vinho e a confiança de abrir a porta, preparar o saca-rolhas e sentar no seu sofá tinto sem dizer nada. Eu prefiro me apossar.

Dono do vinho, do mundo, da ida, do vinho, no fundo, eu não me importo. Estendo a taça e você me emudece cada gole. Seca e com a calma que só tem quem chega ao limite, repete todas as palavras que, em um mundo onde eu não sou o dono do vinho, eu estou dizendo.

Veja bem que você não sabe fechar a porta, abrir um vinho ou calar a boca. Deveria ter trazido o queijo. Você mastigaria e eu poderia digerir tranquilamente o seu silêncio. Depois seria todo aquilo de sempre: você respira, decanta no canto do sofá e está pronta. Fluida, toma conta da minha boca, cheia de tudo o que eu não disse e dos sabores que você imagina. 

Não hoje. Este é um bom ano para quem não se importa e eu não vou desperdiçar meu Le Coin Perdu. Fecho a porta e vou com o vinho.


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segunda-feira, julho 11

Imigrante


Chorava um rio e ainda nem era janeiro. Saudade demais. Encontrei-a sentada no canto da sala, do lado da árvore que eu montei de manhã para a gente comemorar o natal sem as crianças que ainda íamos fazer. E já não tinha como.
“Quero voltar”.
Ela era certa em tudo o que dizia. Foi assim que veio e é assim que partiu. Nas malas, só roupas. E sutilmente era como se toda a casa não tivesse mais nada. Dormi no chão. Almocei no chão. Vi no chão a notícia do ônibus que caiu.
Ela queria voltar.
Comprou a passagem de ida assim que tinha voltado e sequer telefonou. Estava certa que eu seria felicidade só de abrir a porta, só de deixá-lá entrar, só de ela colocar as malas no lugar, só de estar.
Vejo só as luzes da árvore e já é janeiro. Compro as coisas que ela tinha. Coloco na mala que ela tinha. Corro como um rio para que não termine o mês sem que eu encha a casa com ela. É o que ela faria. Com certeza.

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quinta-feira, julho 7

Corra, corra, corra

Faltava tempo. Sobrava isso que chamam de felicidade. E de que adiantava tanta felicidade se as horas corriam sem levar na bagagem isso que dizem ser os benefícios da felicidade. Não se sentia leve porque não havia tempo. Suspirar não podia que faltava fôlego. Sobrevivia e isso era tudo o que sentia viver.
Ouvia dizer que era feliz. Talvez fosse. Na correria, não pensava. Agia e pronto. Pronto para tudo. Menos para a tal felicidade. Não havia desculpas, atrasos nem regalias. Tudo deveria ser feito religiosamente no horário. Esboçava um sorriso já na cama. Tão grande o cansaço que dormia com uma cara idiota, de quem tenta fingir e se esquece.
E um dia se esqueceu. Ninguém dizia mais que ele era feliz. Ninguém invejava isso que chamam de felicidade. Ninguém viu quando foi que parou. A verdade é que ninguém descobriu se de fato foi feliz todo esse tempo. Ainda assim, na memória ele sempre diz: bons tempos.

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terça-feira, abril 5

O papel na escrivaninha

O lápis escapou da mão para deitar e rolar sobre a folha. O que apareceu nem parece palavra mas é. Ficou ali impresso na pele a tatuagem feita sem ferir, feita de cócegas e grafite. Palavrinhas bem sucintas, salientes e sossegadas. Quase um carinho. Um caminho, sim. Sem direção. Ora rabisco ora ponto e ia escorregando enquanto o telefonema durasse. Ah, a arte de escrever sem pena. O traço que vai, a lembrança que vem e no meio as mãos sem saber onde ir. Ninguém liga o sentido. Ninguém desliga. E quando termina, fica ali no papel uma história igual gente: sem começo, fim nem intenção.

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segunda-feira, março 28

Segunda

Lourdes dormiu 12 horas e quando acordou pensou Hoje não. Não foi ao trabalho médico supermercado e tudo. Assim que acendeu os olhos, fechou de volta e deixou o tempo passar sem dormir. Não pensou não fez força não teve medo. Via tudo transparente como as coisas são pela manhã. Teve fome e comeu. Teve sede e bebeu. Teve saudade. Do cobertor fez abraço, do sofá ninho. Deixou a pressa no ontem. Sorriu sem nada e quando anoiteceu dormiu. E o dia todo foi sonho.

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